Acordo às 09h00, tenho uma sessão marcada para às 10h30, que eu sei que deve começar lá pelas 11h00. É um pouco sacrificado acordar cedo pra mim, mas esse sub é uma exceção à regra. O conheço há alguns anos, ele não mora em São Paulo e eu sei que ele só pode de manhã por conta dos negócios dele na cidade.
Fazia bastante tempo que não nos víamos, quase dois anos, nesse hiato em que parei com as sessões.
Eu acho muito bonito receber mensagens de subs antigos que ainda querem fazer sessão comigo e que se lembram em detalhes das experiências comigo.
Nessas horas é que eu tenho certeza que fiz a coisa certa como dominatrix, o que eu sempre quis, que é impactar a vida das pessoas que me procuram para viver uma experiência única de prazer a partir da dominação e dos fetiches.
Acordo um pouco nervosa, sei bem o que fazer, mas não sei qual será a sensação de retornar a um quarto de motel para uma sessão. Irei amar? Odiar? Lembrarei do passado? Sentirei prazer ou culpa?
Sou tirada da minha zona de conforto por esse sub que tem um fetiche bem específico: ser dominado por uma mulher aparentemente comum, sem maquiagem e sem roupa de dominatrix. Ao olhar pelo espelho da minha penteadeira e ver o reflexo do meu eu sem a persona fico assustada, ao mesmo tempo sei que com esse sub estou segura e não há nada de real a temer. É só a minha mente, que é um poço de ansiedades mil criadas pela minha imaginação.
Saio de casa com um vestido de cetim que mais parece uma camisola, botas de montaria e cabelo amarrado, me sinto à vontade com minhas roupas baunilha. Lembro que à tarde ainda tenho reunião na Cultura, então arrumo minha mala com a roupa que usarei lá e a roupa de academia, o dia será longo.
Depois de um trânsito de quase uma hora chego ao motel, mas parece que esqueci o medo dentro de casa. Saio do carro para deixar o documento na recepção, o uber me deixa em frente a suíte, dou ao motorista uma caixinha pela demora, mas não sinto vergonha nenhuma, como antigamente já senti.
Entrando no quarto sinto que estou voltando para casa, não apenas por conhecer o motel, o quarto e o sub, mas especialmente por sentir que tinha voltado a fazer o que amo! Sei que passei o último ano tentando me encaixar em um modelo normativo de trabalho, e que apesar de estar na minha área, em um local que já conhecia, eu nunca mais senti que era parte dali desde o dia que retornei.
Talvez se eu nunca tivesse conhecido a dominação profissional, se eu não tivesse me apaixonado pelas sessões, se eu não tivesse ido para o mundo descobrir quem eu sou independente das expectativas dos outros, talvez assim eu tivesse me adaptado bem ao trabalho burocrático novamente, mas retornar antes das lições já aprendidas não é possível.
Nas janelas do prédio histórico em que trabalho, enxergo celas que prendem minhas asas para que eu não possa voar fora de lá, e que me encarceram para que eu esteja sob controle do Estado e do que a sociedade espera de uma mulher. Meu lado criativo é tolido naquele ambiente cinza em que as máquinas somos nós, trabalhamos todos com seus processos em seus computadores, o barulho das teclas me irrita, mas não tanto como as vozes dos colegas de trabalho que tentam fazer com que o tempo passe mais rápido com seus bate-papos furados.
Não vejo mais as cores da vida entre tantas roupas beges, de caimento quadrado em alfaiataria. - Não seja sensual! - eles dizem. Nada de vestido, não use vermelho, não vista saia, fenda, decote ou salto, seja invisível se quiser sobreviver na política. Um lugar que me obriga a viver como maquinário me faz perder a vontade de fazer tudo. Esse trabalho é como uma dose de veneno diária colocada no café que tomo diversas vezes ao dia para não morrer de tédio.
De olhos bem abertos, chego diariamente tomando um energético, minha marca registrada, que já virou até piada, mas esse é o único combustível que deixa minha máquina de produção desperta. Após um ano me esforçando para pertencer a um lugar conhecido como “normal”, e que é muito esquisito pra mim, começo a perceber que nem mesmo um litro do combustível enlatado faz mais efeito, não tenho vontade de sair de casa, nem da cama. Deitada em posição fetal, sinto como se estivesse presa dentro de uma casca, que dizem ser a melhor coisa a se fazer pra eu me preservar, mas que insiste em me sufocar.
Na terapia semanal tenho todas as pistas do que devo mudar, mas jogo as reflexões para baixo do tapete quando penso: Como vou lidar novamente com o estigma? Irei cortar laços novamente com parte da família? Como posso voltar para o lugar de onde eu mesma decidi me retirar?
O doutor aumenta minha dose de dopamina, já que a dieta balanceada, os exercícios físicos e a terapia parecem não fazer efeito. Remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para ansiedade e todas as pílulas mágicas vendidas na farmácia não curam a tristeza de levar uma vida sem satisfação e significado pessoal, diz médico.
Aprendo que não adianta aumentar as doses sem mudar de rota, não há resposta ou errada para nossas escolhas. Percorrer o caminho errado talvez seja o certo a se fazer, porque às vezes é preciso passar um tempo na prisão para conseguir enxergar o que ninguém vê e voltar para casa, ou para um quarto de motel às onze da manhã.
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